terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Memórias Enterradas

"Fez um gesto lento e cansado para virar o seu corpo na curva – imaginária, dado que tudo à sua volta era, e sempre fora, a mesmice branca da neve – e deu por si a parar naquele lugar. Havia dias em que conseguia distrair a sua mente o suficiente com banalidades e passar por aquele recanto escondido da serra sem ser paralisado por memórias dolorosas. Sem ficar estático, a reviver o dia em que o seu coração morreu e o seu corpo se esqueceu de o seguir. “Já passa das oito, Alzira!”, recorda-se de ter berrado à sua mulher, enquanto a seguia atabalhoadamente pela ribanceira abaixo. “Já está quase na hora!”. Berrou-lhe ordens com toda a autoridade que conseguiu invocar mas, com apenas pouco mais de três meses passados após o seu casamento, “respeitar e obedecer” era um dos votos que a sua mulher ainda parecia ter dificuldade em cumprir. O fogo que ardia dentro dela era a grande razão porque a amava, mas era também o grande culpado pelos acentuados cabelos brancos que já despontavam nos seus 23 anos de cabeça. Como quase sempre acontecia, não lhe obedeceu. Como quase sempre acontecia, foi ele a segui-la. Como quase sempre acontecia, apesar de tudo, era algo que fazia com um mal escondido sorriso na cara. O mesmo sorriso que tinha morrido com o seu coração. A sua cara ainda era capaz de se contorcer num rugoso “U”, funcional e respeitoso, mas, nos últimos 53 anos, nunca mais tinha sido capaz de sorrir. Havia dias em que conseguia distrair a sua mente. Este não era um deles.
Conseguia ouvi-los directamente na sua cabeça. Uivos ventosos a subir em espiral pelo seu cérebro para cima, paralisando-lhe as pernas e a voz. Tal como há mais de cinquenta anos atrás, conseguia ver os vultos na distância atraindo a atenção da sua mulher como um cruel fogo-fátuo. Quando voltou a visualizar os contornos do vento a unirem-se como uma ponta de flecha afiada, sentiu os joelhos a dar de si e caiu para a frente, com os braços semi-enterrados no frio da neve, com os seus olhos semi-aquecidos pelas lágrimas.
Perdeu a noção do tempo, mas sabia que devia ter ficado naquela posição pelo menos uns cinco, dez minutos. Assim, foi com grande espanto que, depois de ter sacudido a neve dos seus braços, as lágrimas dos seus olhos e as memórias, ainda que apenas por breves momentos, da sua alma, reparou que os dois vultos na distância não tinham desaparecido..."